sábado, 21 de julho de 2007

O atestado médico

Creio que data já dos princípios de 2006, este artigo de José Ricardo Costa, professor de Filosofia, colunista do Jornal Torrejano. Foi, desde então, publicado em vários blogues e tem vindo a circular pela internet, via e-mail. Pela sua actualidade, vale sempre a pena lê-lo e relê-lo. Creio que, se tivesse sido escrito neste ano de 2007, a única inclusão possível adicional ao texto, seria a do médico do Centro de Saúde.


O atestado médico

Imagine o meu caro que é professor, que é dia de exame do 12º ano e vai ter de fazer uma vigilância. Continue a imaginar. O despertador avariou durante a noite. Ou fica preso no elevador. Ou o seu filho, já à porta do infantário, vomitou o quente, pastoso, húmido e fétido pequeno-almoço em cima da sua imaculada camisa. Teve, portanto, de faltar à vigilância. Tem falta.Ora esta coisa de um professor ficar com faltas injustificadas é complicada, por isso convém justificá-la. A questão agora é: como justificá-la?
Passemos então à parte divertida. A única justificação para o facto de ficar preso no elevador, do despertador avariar ou de não poder ir para uma sala do exame com a camisa vomitada, ababalhada e malcheirosa, é um atestado médico. Qualquer pessoa com um pouco de bom senso percebe que quem precisa aqui do atestado médico será o despertador ou o elevador. Mas não. Só uma doença poderá justificar sua ausência na sala do exame. Vai ao médico. E, a partir este momento, a situação deixa de ser divertida para passar a ser hilariante. Chega-se ao médico com o ar mais saudável deste mundo. Enfim, com o sorriso de Jorge Gabriel misturado com o ar rosado do Gabriel Alves e a felicidade do padre Melícias. A partir deste momento mágico, gera-se um fenómeno que só pode ser explicado através de noções básicas da psicopatologia da vida quotidiana. Os mesmos que explicam uma hipnose colectiva em Felgueiras, o holocausto nazi ou o sucesso da TVI. O professor sabe que não está doente. O médico sabe que ele não está doente. O presidente do executivo sabe que ele não está doente. O director regional sabe que ele não está doente. O Ministério da Educação sabe que ele não está doente. O próprio legislador, que manda a um professor que fica preso no elevador apresentar um atestado médico, também sabe que o professor não está doente. Ora, num país em que isto acontece, para além do despertador que não toca, do elevador parado e da camisa vomitada, é o próprio país que está doente. Um país assim, onde a mentira é legislada, só pode mesmo ser um país doente. Vamos lá ver, a mentira em si não é patológica. Até pode ser racional, útil e eficaz em certas ocasiões. O que já será patológico é o desejo que temos de sermos enganados ou a capacidade para fingirmos que a mentira é verdade. Lá nesse aspecto somos um bom exemplo do que dizia Goebbels: uma mentira várias vezes repetida transforma-se numa verdade. Já Aristóteles percebia uma coisa muito engraçada: quando vamos ao teatro, vamos com o desejo e uma predisposição para sermos enganados. Mas isso é normal. Sabemos bem, depois de termos chorado baba e ranho a ver o "ET", que este é um boneco e que temos de poupar a baba e o ranho para outras ocasiões. O problema é que em Portugal a ficção se confunde com a realidade. Portugal é ele próprio uma produção fictícia, provavelmente mesmo desde D. Afonso Henriques, que Deus me perdoe. A começar pela política. Os nossos políticos são descaradamente mentirosos. Só que ninguém leva a mal porque já estamos habituados. Aliás, em Portugal é-se penalizado por falar verdade, mesmo que seja por boas razões, o que significa que em Portugal não há boas razões para falar verdade. Se eu, num ambiente formal, disser a uma pessoa que tem uma nódoa na camisa, ela irá levar a mal. Fica ofendida se eu digo isso é para a ajudar, para que possa disfarçar a nódoa e não fazer má figura. Mas ela fica zangada comigo só porque eu vi a nódoa, sabe que eu sei que tem a nódoa e porque assumi perante ela que sei que tem a nódoa e que sei que ela sabe que eu sei. Nós, portugueses, adoramos viver enganados, iludidos e achamos normal que assim seja. Por exemplo, lemos revistas sociais e ficamos derretidos (não falo do cérebro, mas de um plano emocional) ao vermos casais felicíssimos e com vidas de sonho. Pronto, sabemos que aquilo é tudo mentira, que muitos deles divorciam-se ao fim de três meses e que outros vivem um alcoolismo disfarçado. Mas adoramos fingir que aquilo é tudo verdade. Somos pobres, mas vivemos como os alemães e os franceses. Somos ignorantes e culturalmente miseráveis, mas somos doutores e engenheiros. Fazemos malabarismos e contorcionismos financeiros, mas vamos passar férias a Fortaleza. Fazemos estádios caríssimos para dois ou três jogos em 15 dias, temos auto-estradas modernas e europeias, mas para ver passar, a seu lado, entulho, lixo, mato por limpar, eucaliptos, floresta queimada, barracões com chapas de zinco, casas horríveis e fábricas desactivadas.
Portugal mente compulsivamente. Mente perante si próprio e mente perante o mundo. Claro que não é um professor que falta à vigilância de um exame por ficar preso no elevador que precisa de um atestado médico. É Portugal que precisa, antes que comece a vomitar sobre si próprio.

1 comentários:

Anónimo disse...

bah

viva ao Socrates!!!